terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Tristes e lamentáveis realidades de um país real chamado Portugal





Os inspectores da crise

(Mais tarde ou mais cedo eles passarão também por sua casa)



Recostada na aprazível esponjosidade do seu sofá, dona Elvira, senhora há já alguns anos aposentada, recostada na sua mediana pensão, pertencente à classe média, como todos os dias, àquela tão esperada, despreocupada e aprazível hora que sucede ao almoço, engolfa-se no romântico, cativante e muito brasileiro enredo de uma telenovela, uma generosidade que os canais nacionais fazem questão de despejar nas casas e nas vivências daqueles que já foram desengrenados da imparável máquina produtiva. De súbito, a campainha da porta interrompe o tão ansiado episódio do beijo que os protagonistas vêm adiando há mais de duas semanas. Furiosa, ocorre-lhe um acervo de palavrões, mas aos seus lábios apenas emerge um ténue “arre gaita”. Resmungando, levanta a muito custo o pesado traseiro do sofá, desprega a muito custo os aficionados olhos do ecrã, calça os chinelos, também eles ansiosos por aquele beijo, e num passo arrastado e aborrecido dirige-se à porta de entrada. Abre-a bruscamente. 

Bom dia, minha senhora – diz um homem impecavelmente enfiado num impecável fato cinzento encimado por uma não menos impecável gravata laranja. – Somos do Ministério das Finanças e estamos aqui para fazer uma pequenina manutençãozinha da crise. Dá licença que entremos?

- Manutenção…? da crise….? Mas… - balbucia, perturbada, intrigada, a senhora.

- Não recebeu a notificação pelo correio, não tem visto a publicidade que tem passado na televisão? – indaga num tom “não me diga que” o homem da gravata laranja.

O nervosismo, com o buril da obstupefacção, grava no seu rosto uma expressão de inesperabilidade:

- Parece que um dia desta semana ouvi o meu marido falar nisso… mas pensei que… Demora muito tempo?

- Bastam vinte minutinhos, ou nem tanto.

Lá se vai o beijo... Todo o seu pensamento descamba instantaneamente, aflitivamente para esta constatação. Os imperativos da crise exigem sacrifícios de todo o jaez. Incluídos estão também muitas vezes episódios fulcrais de telenovelas. É imperativo que assim seja, defendem os gestores, os mantedores e os entendidos da crise.

Depois de examinados alguns recibos, facturas e outras burocráticas e inclassificáveis papeladas, demorou precisamente dezoito minutos, os fiscalizadores explicam à dona Elvira que, para a crise continuar a vigorar, a robustecer-se, ela, assim como a maioria dos portugueses a quem já tinha sido feita a manutenção da crise, irá obrigatoriamente ficar mais pobre.

- São coisas como estas que fazem avançar o nosso país, minha senhora. Dêmos graças por termos um governo zeloso e competente que de tudo faz para gerir da maneira mais eficaz a crise e manter-lhe a boa saúde - diz apostolicamente do cimo da sua desenrascada eloquência o outro fiscalizador.

Só me faltava esta.... Tartamudeia para si mesma, e à falta de melhor apreciação, a perplexa dona Elvira. Eu… nem tenho palavras…Cambada de … Acrescenta logo depois, sem conseguir concluir.

 A estupefacção, quando vai para além dos confins do inesperável, obstrui o natural percurso do sangue através das veias e vasos sanguíneos, e esta momentânea disfunção compromete a normal irrigação do cérebro. Normalmente, nestas situações, a zona responsável pelo processo de produção da fala, localizada no hemisfério cerebral esquerdo, a chamada área de Broca, ressente-se muito em particular com a acentuada quebra da oxigenação, o que talvez explique o tão requisitado e frequentíssimo bordão “nem tenho palavras”. - A ciência, nos seus fartos e inteirados compêndios, lá conterá decerto uma explicação mais minudenciosa para este facto que o meu intelecto não logra explicar. Mas eu, de massa cinzenta bem oxigenada e possuidor de total liberdade de narrador, concluo-lhe a frase. Vilões. Cambada de vilões.

Antes de saírem, os inspectores fazem questão de confirmar este qualificativo:

- São 75 euros, minha senhora - aventa com sorriso e olhos agiotas, enquanto saca de um volumoso livro de facturas desfolhado, o engravatado.

Dona Elvira, com seus olhos furibundos e sanguissedentos, arremessa com uma raiva e revolta pujantes para os olhos de ambos a palavra ladrões. Parece que eles compreendem.

Sovinamente, num gesto célere e mecânico, o engravatado arrecada numa recheada mala os patacos. Depois acena ao outro com a cabeça um autoritário “vamos pirar-nos”, e, em fila, com esgar de “mais uma missão cumprida”, os dois rumam em direcção à porta.

Dona Elvira repete no silêncio do seu dilacerante descontentamento a palavra ladrões. Engole-as, todas, involuntariamente. Em poucos segundos as sílabas misturam-se activamente com os sucos estomacais, de imediato forma-se uma reacção acídica, afligente, queimosa, e o composto resultante desencadeia um passageiro mas doloroso mal-estar. Dona Elvira aguenta com bastante sofrimento ambas as estocadas. Fica destroçada; todavia, resiste.

Chegam de surpresa a casa de uma pessoa desprevenida, desinformada, interrompem telenovelas, desarrumam a vida, os próximos anos, borcam sentenças, disparates, e no final, apoteoticamente, ainda cobram 75 euros. Malvados inspectores, desalmado país, impiedosos governantes, maldita vida.

- Agradecemos toda a sua colaboração. Desejamos-lhe a continuação de um bom dia. Adeus, minha senhora.

Saem como entraram, exactamente com o mesmo impositivo semblante, a mesma asquerosa sobranceria.

Em seguida, numa passada processional, dirigem-se ao apartamento contíguo, à próxima vítima.

Adeus, meus senhores – pronuncia com ligeiro sufoco dona Elvira ao mesmo tempo que a sua área de Broca, já em perfeitas condições, acciona e faz chegar às suas cordas vocais um nada gentil e pouco sonoro “seus filhos da... – o agudíssimo miar esfomeado do gato corta-lhe o concluimento da frase.

Somos todos uns filhos da crise.

Ditam as boas leis da moral, do familismo e do afecto que todo o filho deve desejar o bem de seus pais. Abramos pois uma excepção. – Que se dane esta maléfica e desavergonhada progenitora.

Entretanto, o governo, por intermédio do Ministério das Finanças, acaba de colocar no terreno mais uma centena e meia de inspectores creditados.



dinismoura
Dezembro 2012


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